Uma das facetas mais formidáveis do futebol é a capacidade de transcender a barreira do esporte. Que o digam Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, e Juan Guaidó, autoproclamado presidente interino do país. Os dois são a cara do antagonismo. Defendem bandeiras distintas no país assolado por uma crise, e por isso naturalmente não se dão. É que Guaidó, em suma, se alimenta com as denúncias de autoritarismo para definir o governo atual como uma ditadura, enquanto Maduro trata de deslegitimar o opositor alegando que o povo o colocou ali.
No último sábado, no entanto, ambos falaram em uníssono. Ao menos nas redes sociais, a desarmonia ideológica foi deixada de lado para dar lugar ao mesmo discurso. E houve motivo para isso: era dia de jogo da seleção pela Copa América.
¡Arriba Venezuela! Estamos llenos de alegría y pasión por esta gran victoria. Con 3 golazos extraordinarios nuestros invictos guerreros Vinotinto aseguraron la clasificación a los Cuartos de Final de la #CopaAmerica ¡Felicitaciones! pic.twitter.com/YUVoAEY1Xa
— Nicolás Maduro (@NicolasMaduro) 22 de junho de 2019
“Vamos, Venezuela! Estamos cheios de alegria e paixão por essa grande vitória. Com três golaços extraordinários, nossos guerreiros invictos da Vinotinto asseguraram a classificação às quartas de final da Copa América. Parabéns!”
Gracias Vinotinto, por esta alegría, por dejarlo todo en la cancha por su país. Toda Venezuela con ustedes.
Cuando trabajamos unidos, con esfuerzo y constancia, logramos lo que nos proponemos.
¡Vamos Vinotinto! #VamosVenezuela
— Juan Guaidó (@jguaido) 22 de junho de 2019
“Obrigado, Vinotinto, por essa alegria, por deixar tudo em campo pelo seu país. Toda a Venezuela está com vocês. Quando trabalhamos unidos, com esforço e constância, alcançamos o que nos propomos a alcançar. Vamos, Vinotinto!”
Uma ligeira contextualização: a crise na Venezuela é política, econômica e social. Em decorrência da queda no preço do petróleo, que cuidou em solidão da saúde financeira do país em anos mais recentes, o povo venezuelano sofre com o que há de pior: desemprego, pobreza, fome… O PIB dos nossos vizinhos de continente caiu mais de 40% desde 2013, e estima-se que aproximadamente três milhões de pessoas tenham cruzado a fronteira com nada mais do que o desejo de sobreviver em mente. É um cenário assustador.
Politicamente, há dois grupos que se digladiam dia a dia e cuja convergência por ora soa improvável: os que confiam no atual governo, que outrora colocou o país na vanguarda do desenvolvimento; e os que clamam por mudança imediata. É como se existisse uma linha que divide a Venezuela. De um lado está Maduro, eleito democraticamente e que, portanto, tem a constituição ao seu favor – embora um número considerável de países, o Brasil entre eles, não reconheça o resultado das eleições de 2018. E do outro, Guaidó, que dá voz a uma massa de insatisfação enorme demais para ser ignorada.
Por isso, a vitória da Venezuela sobre a Bolívia por 3 a 1 no Mineirãono sábado significou mais do que a classificação para as quartas de final da Copa América. O prêmio mesmo foi fazer o povo venezuelano esquecer, ao menos por alguns instantes, a rotina.
– Há uma relação muito profunda com a seleção em um país que está dividido – explica ao GloboEsporte.com Ramon Medina, jornalista venezuelano que encontra-se no Brasil para a cobertura da Copa América.
“As pessoas a favor do governo e as opositoras estão divididas durante toda a vida, e o único momento que nos une é quando a Vinotinto joga. A seleção não tem nenhum cunho político, é uma esperança de união para o povo venezuelano. É a esperança de que algum dia o país possa voltar a ser unido”, completa ele.
O curioso, para não dizer incoerente, é que o momento da seleção vai na contramão da crise do país. E isso já há alguns anos. Enquanto a crise faz a economia venezuelana despencar, a equipe comandada por Rafael Dudamel vive uma fase sem precedente em sua história.
Habituada sobretudo a sofrer goleadas ao longo de sua existência, a Vinotinto classificou-se para as quartas de final da Copa América nas três edições mais recentes, incluindo a atual. Antes disso, havia passado de fase uma única vez: em 2007, em casa. Em 2011, quando a competição se deu na Argentina, a Venezuela alcançou um inédito e até uma década atrás impensável quarto lugar.
Outros fatos dão a dimensão desse fenômeno. É a primeira vez, por exemplo, que a seleção venezuelana engata sete jogos oficiais (sem contar amistosos, portanto) consecutivos sem perder.
- Venezuela 0 x 0 Colômbia – Eliminatórias para a Copa
- Argentina 1 x 1 Venezuela – Eliminatórias para a Copa
- Venezuela 0 x 0 Uruguai – Eliminatórias para a Copa
- Paraguai 0 x 1 Venezuela – Eliminatórias para a Copa
- Peru 0 x 0 Venezuela – Copa América
- Brasil 0 x 0 Venezuela – Copa América
- Bolívia 1 x 3 Venezuela – Copa América
Também é a primeira vez, novamente considerando somente jogos oficiais, que a equipe fica tanto tempo sem sofrer gols. Do gol contra de Feltscher aos nove minutos do segundo tempo da partida contra a Argentina, em setembro de 2017, até o gol de Justiniano aos 36 da segunda etapa na vitória sobre a Bolívia no último sábado, foram 478 minutos com a rede intacta. Difícil assimilar tal cenário tratando-se de uma seleção que, só nos quatro jogos da Copa América de 1991, sofreu 15 gols.
– A seleção é sempre uma alegria para o nosso país – conta Savarino, meia de 22 anos que joga no Real Salt Lake, da Major League Soccer, a liga americana de futebol.
– Nós temos que tratar de dar sempre o melhor nas partidas para que essa divisão se transforme em união – completa.
Como em quase tudo que envolve o futebol, os resultados são fruto de um trabalho consistente na base. Coincidência ou não, foi Dudamel que levou a seleção sub-17 ao vice-campeonato do Sul-Americano em 2013, que deu à equipe o direito de disputar no mesmo ano a Copa do Mundo da categoria, onde a Venezuela jamais havia estado. E há dois anos, também com o ex-goleiro como treinador, a Vinotinto alçou seu voo mais alto ao chegar à final do Mundial Sub-20 – perdeu para a Inglaterra por 1 a 0.
A partir daí, a Venezuela tornou-se a única seleção sul-americana, com exceção do trio de ferro (Brasil, Argentina e Uruguai), a jogar uma decisão de Copa do Mundo, seja ela sub-17, sub-20 ou principal.
É de se imaginar que a seleção de vento em popa funcione como um fio de esperança para a população da Venezuela, que provavelmente enxerga nos feitos dos seus jogadores dentro de campo um dos poucos motivos de orgulho do país. Mas essa relação é recíproca, como contou Rafael Dudamel em entrevista recente.
– A situação do país é um impulso para os nossos jogadores porque queremos dar alegria aos fanáticos pela Vinotinto. Queremos que o país esteja em calma e em paz. Quando a seleção joga, é um lindo momento para convidar todos os venezuelanos a estar unidos – disse.
A seleção sem partido
Em meio ao conflito político que desestabiliza o país neste momento, a Federação Venezuelana de Futebol (FVF) pende para o lado de Nicolás Maduro. Ainda que não seja público, é um apoio notório. É difícil para a entidade se desvencilhar do governo quando seu vice-presidente, Pedro Infame, é também Ministro do Esporte do país; e uma das patrocinadoras é a PDVSA, empresa petroleira estatal.
No entanto, existe um esforço por parte de Rafael Dudamel e seus comandados de construir uma imagem apartidária da seleção, separando-a da federação.
– A seleção não tem nenhum cunho político, é isso que Dudamel e os jogadores transmitem – relata o jornalista Ramon Medina.
Isso ficou claro em março deste ano, depois da histórica vitória da Venezuela sobre a Argentina num amistoso em Madri. No fim do jogo, Antonio Ecarri, embaixador venezuelano na Espanha e representante de Juan Guaidó, visitou o vestiário da seleção. Nada demais, não fosse o fato de que as fotos da visita foram publicadas nas redes sociais dentro do contexto fictício de um apoio à oposição. O episódio tirou a paciência de Dudamel.
O treinador da Vinotinto sentiu-se traído e ameaçou deixar o comando da seleção. Disse com todas as letras: “Estou colocando meu cargo à disposição”. Foram duas semanas de incertezas, e só no início de abril foi que a federação anunciou que manteria o técnico. Ele, por sua vez, publicou uma carta desculpando-se por ter “desviado do foco” – que é o futebol, e somente o futebol.
– Com muito orgulho, com muita fé, com afinco, disciplina, seriedade e vontade, estamos trabalhando unidos para fazer da seleção uma equipe capaz de participar do Mundial Catar 2022. Essa é a nossa meta, e a ela estamos dedicados – escreveu Dudamel.
Caso de fato tenha êxito nas eliminatórias que começam em março do ano que vem, o país disputaria no Catar a primeira Copa do Mundo de sua história. Antes, porém, pega a Argentina na sexta-feira, às 16h (de Brasília), para dar sequência ao sonho do inédito título da Copa América. Menos 90 minutos de crise na Venezuela.
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